23 de julho de 2009

Artigos sobre namoro e relacionamento. Filhos de antigas uniões!

Não é raro que se ouçam, no consultório, queixas ligadas à relação com os filhos do primeiro casamento do namorado.
Lúcia está a ponto de romper o compromisso com seu parceiro,com o qual possui inúmeras afinidades. Além disso, o casal se ama. A idéia de ruptura se deve a uma preferência exagerada de seu namorado pela filha de 14 anos. Essa filha tem, segundo ela, a função de manter os pais, que são separados, unidos. Lúcia se diz ciumenta e parece possessiva. Para ela é insuportável presenciar cenas de carinho entre pai e filha quando as considera exageradas e, mais ainda, testemunhar, conversas telefônicas que evidenciam uma boa ligação de seu parceiro com a ex-mulher. O que pensa o interlocutor de Lúcia ao ouvir suas queixas: Será que esse homem, realmente, exagera nas atenções que dispensa à filha ou elas são ampliadas, no imaginário de Lúcia?

Ela não tem filhos e o desejo de tê-los dá lugar, agora, à necessidade de engravidar para deslocar a atenção do namorado para um bebê. Por enquanto, prefere que ele saia sozinho com a filha, uma vez que lhe é extremamente penoso participar desses encontros. No período de férias, é obrigada a tolerar a presença da menina, desta vez atenuada pela companhia dos amigos na casa da fazenda, onde se reúnem por quinze dias. O que Lúcia espera ouvir? Que desfaça esse relacionamento por causa da filha de seu namorado? Espera que ele seja chamado e que lhe seja dito que está agindo mal ao dar tanta atenção à filha? Será que ela acharia razoável que se tentasse induzi-lo a desfazer os bons contatos que preservou com sua primeira esposa? Ao procurar auxílio, Lúcia demonstra saber que algo de errado se passa consigo mesma. Tem dificuldade em acreditar nisso, espera que seja um engano e que deva persistir com suas ilusões de ser a vítima de uma relação que ela insinua, embora timidamente, ser incestuosa.

Com algum tempo de terapia, o que se descobre é que ela não teve um pai presente, embora não tenha ocorrido nenhum divórcio em sua família. O pai de Lúcia era um homem introvertido, dedicado ao trabalho e a suas leituras, incapaz de expressar, abertamente, seu carinho pelos filhos. Naquela época, os livros eram os grandes rivais que formaram uma barreira entre o pai e o resto da família. A mãe vivia amargurada e silenciosa, um ser solitário que não contava com o interesse do consorte pelo que lhe interessava ou preocupava.

Compreendida essa situação que havia sido, na realidade, vivida e esquecida, Lúcia se dá conta de que seu mal-estar vis-à-vis à quase enteada tem um nome diferente de ciúme. O que ela sente é inveja da garota, no lugar da qual a menina que ainda existe dentro dela gostaria de estar. A consciência desse fato não operou uma mudança rápida; foi preciso algum tempo até que Lúcia pudesse se familiarizar com seus sentimentos. Esse período de elaboração costuma demorar um tempo significativo pois implica o perdão e o resgate do que houve de bom na relação com o indivíduo de onde partiu o agravo (mesmo que inconsciente); neste caso, de seu pai. Tudo isso estava fora do alcance de sua memória, embaçada por um ressentimento negado. O que foi aqui descrito pode ser considerado um caso com final feliz. Uma atitude corajosa e persistente da parte de Lúcia no que tange à terapia e seus percalços, e a presença de um parceiro que desejava realmente proteger sua possibilidade de união contribuiram para que uma poderosa tensão enfraquecesse, se tornasse benigna ao dar lugar à tolerância e a um novo comportamento. A relação entre pai e filha recuperou a condição de naturalidade que não havia podido ter antes perante os olhos da futura madrasta.

Thaïs Sá Pereira e Oliveira
Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, do Rio de Janeiro, e da Federação Internacional de Sociedades Psicanalíticas, de Nova Iorque, EUA.